CAPÍTULO 01:
"INDOLOR"
ESCRITO POR:
KAIO GOMEZ
FADE IN:
CENA 1.
INTERIOR. MANSÃO FERRAZ.
SALA — NOITE
Abre-se com PLANO DETALHE em um
pequeno frasco tampado, que contém um líquido azulado, sobre uma mesa de vidro. CAM desfoca e vai fazendo
trajetória pela mesa passando por um estojo de lápis
e canetas, papéis empilhados até chegar a um notebook, que obtém um pen-drive inserido.
CLOSE na tela do notebook, onde
vemos o rosto de uma mulher abatida e de olhos inchados de choro, MARINA, 42
anos, cabelos negros, vestida em uma camisola de seda. A webcam está ligada gravando a confissão
da mulher.
MARINA (chorando) —
Eu sinto muito, Victor. Muitíssimo. Não queria que as coisas terminassem desse modo, mas foi preciso. Foi
a única maneira que encontrei pra escapar desse labirinto infernal...
Descobriram tudo! Tudo! Desde o começo do nosso relacionamento às
escondidas até à morte do Elias, a qual eu ocasionei...
FUSÃO PARA:
INÍCIO DE FLASHBACK:
CENA 2.
INTERIOR. MANSÃO FERRAZ.
QUARTO DE MARINA — NOITE
LEGENDA: "Três
meses atrás..."
Quarto de casal luxuoso. Marina
abre a porta e ENTRA. Em CORTES DESCONTÍNUOS,
ela tira a roupa simples em que se encontra vestida, veste um vestido
deslumbrante, põe seus brincos de diamante, pega sua bolsa de lado e SAI, fechando
a porta.
CORTA PARA:
CENA 3.
EXTERIOR. FACHADA DA MANSÃO FERRAZ — NOITE
Marina abre os portões,
SAI, os fecha e, em seguida, atravessa a rua em direção
ao seu carro. Ela ENTRA e parte.
MARINA (V. O.) —
Nós fizemos tudo tão sorrateiramente, não deixamos pistas sobre o nosso caso. Ele nunca poderia ter
descoberto, afinal, naquele fim de semana, ele havia viajado para São
Paulo, disse que tinha negócios pra fazer na capital.
CAM desfoca do veículo
da mulher e vai buscar outro, BMW preto, onde vemos, pelo retrovisor, ELIAS, 45
anos, enraivecido e com as mão no volante, decidido, que parte atrás da esposa.
CORTA PARA:
CENA 4.
INTERIOR. QUARTO DE MOTEL — NOITE
Quarto organizado, luxuoso. VICTOR,
40 anos, cabelos negros, bem vestido e de aparência respeitável,
está sentado na beirada da cama fumando seu charuto à
espera de Marina.
BATEM na porta. Ele se levanta,
animado e a abre. É Marina, sensual e decidida.
MARINA —
Desculpe por te deixar esperar. Levei um tempo pra achar o vestido ideal.
VICTOR (olhando-a de cima a baixo) —
Valeu cada segundo.
Ele a puxa para dentro e os dois
caem na cama aos beijos. Transam.
MARINA (V. O.) —
Além de tudo, o mais certo em nossas vidas foi que, sim, eu te amei.
Eu te amo. Demais. Como nunca amei outro homem, você
sempre me fez feliz, sempre...
FUSÃO PARA:
CENA 5.
EXTERIOR. FACHADA DO MOTEL — NOITE
POV DE ELIAS
Vemos a pouca movimentação
na frente do motel luxuoso e discreto. Ali, no meio dos vários
carros que se encontram estacionados, está o de Victor e o de Marina.
DE VOLTA À
CENA
CAM desfoca do ponto de vista de
Elias e dá um CLOSE em seu rosto dentro do carro estacionado. Ele tenta
conter o ódio, olha firme para o volante, engole todo o ressentimento, pisa o
pé no freio e vai embora.
MARINA (V. O.) —
Naquele sonho em que eu estava, eu jamais poderia imaginar o que viria à
frente...
CORTA PARA:
CENA 6.
INTERIOR. MANSÃO FERRAZ.
SALA — NOITE
Sala organizada e bem zelada. Em
CORTES DESCONTÍNUOS, Elias ENTRA no apartamento, vai até
seu quarto, pega uma arma em seu cofre e volta à sala.
Ele vai até
à mesa de bebidas, que fica ao lado da janela, pega uma taça,
enche de uísque e bebe, sempre segurando a arma com a mão
esquerda.
MARINA (V. O.) —
Ele estava desorientado. Descobrir uma traição não é pra qualquer um, há
pessoas que perdem a cabeça e eu já sabia que, quando Elias descobrisse, o pior aconteceria, porque eu
o conheço. Eu conheço seu temperamento, seu mau humor, sua impaciência.
Não importa, ela faria qualquer coisa pra arrancar o mal pela raiz.
CORTA PARA o relógio,
que marca 01:22 da madrugada.
CAM entra em PANORÂMICA
até focar em Elias, sentado no sofá, possesso com a arma ao seu lado. É
neste exato momento que Marina ENTRA, já tomando um susto.
MARINA —
Elias?! O que você está fazendo aqui? Você... Que horas você chegou? Você chegou há muito tempo?
ELIAS (sem olhar para ela) —
Não, porque primeiramente eu nunca estive fora. Eu estava em um
hotel, esperando.
Ela se aproxima dele, um pouco
desconfiada.
MARINA —
Esperando? Esperando o quê?
ELIAS —
A traição!
Marina reage assustada. Elias olha
para ela.
ELIAS —
Que eu sempre desconfiava, que eu sempre tive certeza. Essa noite eu te segui
e, infelizmente, eu descobri que, desde sempre, eu estava certo. Meu Deus!
Lentamente, com a arma em punho,
ele se levanta. Marina percebe a presença do objeto e se desespera.
MARINA —
Não!
ELIAS —
Deitando com outro homem. Pior. Com meu amigo, Victor.
À medida que ele se aproxima, ela se afasta.
MARINA (nervosa) —
Pelo amor de Deus, Elias, não faça uma barbaridade. Meça as consequências
antes.
ELIAS —
Isso, suplica! Pede pra viver! Pede, porque agora você
está nas minhas mãos. Teu destino agora, sua vadia, sou eu quem decido. Miserável!
Te amei, sempre. Amargamente, mesmo sabendo que nunca fui correspondido. Por quê?
Por que você seguiu até aqui? Por que não parou com tudo isso antes?
MARINA —
Me ouve. Se você prosseguir com isso, será fatal. Pensa no homem que você
é, pensa na empresa que você construiu.
ELIAS —
Bosta de empresa, merda de homem, que não foi capaz de enxergar uma traição
diante de seus olhos!
MARINA —
Não diga isso, querido. É um equívoco.
Ela tenta se aproximar, porém
ele lhe dá uma bofetada, que a faz cair no chão.
ELIAS —
Não se aproxime. Não me diga nada, porque da última vez que ouvi algo seu... Me
tornei o inútil que sou hoje.
Ela chora.
POV DE MARINA
Vemos Elias, trêmulo,
com a arma em sua direção.
DE VOLTA À
CENA
Marina se desespera.
ELIAS —
Atira!
MARINA —
O quê? Não estou entendendo, você...
ELIAS (grita) —
Atira! Tenha coragem! Se levanta, empunha essa arma e me mata! Eu sei que você
é mulher o suficiente pra limpar a sujeira depois, eu sei que você
não vai se preocupar. Anda, atira! Ou eu atiro. Só
que se eu fizer isso, não vou pensar duas vezes, você não vai ter escolha.
CLOSE no rosto incrédulo
de Marina.
MARINA —
Não... Não, eu não vou precisar fazer isso. Aliás, você
também não. Nenhum de nós. Pra que passar por mais dor, sendo que nós
podemos finalizar com tudo isso de um modo mais indolor?
Abruptamente, Elias começa
a ficar pálido. Aos poucos, ele larga a arma. Em SLOW MOTION, ele cai de
joelhos no chão se contorcendo, até bater a cabeça no piso e morrer.
Marina se arrasta até
o corpo morto, enquanto chora.
MARINA (sussurra) —
Eu te amo... Querido... Eu te amo.
ÂNGULO ALTO para mostrar Marina deitada sobre o peito de Elias. Por
fim, segue por um DOLLY BACK lento, enquanto ouve-se a seguinte narração.
MARINA (V. O.) —
Eu já sabia que aquela noite iria terminar daquele modo. Calculei tudo
antes. Fiquei até surpresa com o fato de tudo acontecer como eu imaginei...
CORTA PARA:
CENA 7.
INTERIOR. MANSÃO. SALA — DIA
LEGENDA: "Horas antes..."
Marina, vestida de outro modo,
desce as escadas com sua bolsa de lado.
MARINA (V. O.) —
Eu sai naquela mesma manhã e deixei tudo perfeitamente em seus devidos lugares.
Ela abre a porta e SAI.
CORTA PARA:
CENA 8.
EXTERIOR. FACHADA DA MANSÃO — DIA
Marina vai em direção
ao seu carro, que está no outro lado da rua. Ela entra e parte.
CAM vai buscar um táxi
parado à distância. Do interior dele, Elias sai, decidido e vai em direção
à sua casa.
CORTA PARA:
CENA 9.
INTERIOR. MANSÃO. SALA — DIA
Elias ENTRA e olha em volta por
alguns segundos. Depois, sobe as escadas e vai para o...
QUARTO DE CASAL, onde abre as
portas do guarda-roupas de Marina, vasculha sua bolsa e retira seu celular.
MARINA (V. O.) —
Ele veio aqui em casa naquela manhã assim que eu sai. Ele viu nossas
mensagens. Ele nunca esteve fora. Mentiu pra me descobrir.
Elias analisa as mensagens do
celular. PLANO DETALHE nos olhos raivosos dele, que, assim que termina, põe
o telemóvel no mesmo lugar e fecha o guarda-roupas. Por fim, volta para
a...
SALA, onde desce, vagarosamente, as
escadas e para ao lado da mesa de bebidas, que possui uma garrafa de uísque
e um copo ao lado. Ele enche o copo e trata de beber, descontando sua raiva e
explodindo ao jogar o copo com força na mesa, provocando uma leve
rachadura.
MARINA (V. O.) —
Ele viu suas mensagens marcando para logo mais à noite. Descontou na bebida após
a descoberta, no uísque, sua bebida favorita.
CORTA PARA:
CENA 10.
INTERIOR. QUARTO DE CASAL. MANSÃO — DIA
POV DE MARINA
Marina se aproxima do guarda-roupas
e o abre, relevando seu interior. Ela procura por seu celular.
DE VOLTA À
CENA
Marina checa o aparelho.
MARINA (V. O.) —
Elias não se preocupou em limpar as evidências. Estava tudo ali. Desde o
perfume único e marcante...
Marina SAI e vai para a...
SALA, onde analisa, com clareza, a
mesa de bebidas: o copo, a rachadura...
MARINA (V. O.) —
... Ao ódio inevitável.
CLOSE em Marina, angustiada com o
copo nas mãos.
CORTA PARA:
CENA 11.
INTERIOR. MANSÃO. SALA — NOITE
LEGENDA: "Horas
depois..."
Em CONTINUAÇÃO
À CENA 2, Marina desce as escadas vestida impecavelmente com sua
bolsa de lado e seus brincos de diamante. Ela para ao lado da mesa de bebidas e
saca, da bolsa, um pequeno frasco de líquido azul e dispensa um pouco do líquido
na garrafa de uísque.
MARINA (V. O.) —
Sabia perfeitamente que ele iria iria me seguir, me esperaria bastante furioso
ou, como ocorreu, ficaria em casa com uma arma em punhos. Iria me matar, não
importaria. Mas com certeza não faria nenhuma barbaridade de garganta seca... Ele nunca faz.
Ela SAI e fecha a porta. CAM vai
buscar a mesa de bebidas e, em DOLLY IN, se aproxima do objeto.
CORTA PARA:
CENA 12.
INTERIOR. MANSÃO. COZINHA — NOITE
Em PLANO ALTO ofuscado pela hélice
de um ventilador de teto, vemos Marina entrar trazendo o corpo de Elias pelos
braços. Ela possui luvas pretas nas mãos.
MARINA (V. O.) —
Meu plano poderia dar errado, mas não. O pior ficou para o final,
quando tive que limpar a sujeira. Eu poderia ter atirado no Elias, mas iria
presa, de qualquer forma. E também não suportaria fazer isso com o homem que vivi ao lado nos últimos
12 anos. Optei pela sorte. Mas tive que fazer de tudo para reverter a cena e
fazer com que parecesse um suicídio e não um homicídio.
Ela vai até
o armário, abre as gavetas e retira um pedaço de corda. Ela pega uma cadeira
frente à mesa e a posiciona abaixo do ventilador. Marina vai até
a tomada em que o liga e trata de desligá-lo. Por fim, sobe na cadeira e
finaliza amarrando a corda no ventilador.
Marina SAI por alguns instantes e
volta trazendo a garrafa de uísque e o copo nas mãos. Ela põe a garrafa deitada ao lado do corpo, estrategicamente, deixando o
líquido derramar devagar. Finaliza ao quebrar o copo e varrendo os
cacos para perto da garrafa.
MARINA (V. O.) —
Era um plano surreal. Só precisava dar certo.
Ela abre as gavetas outra vez e
retira outra corda, se aproximando do corpo, na intenção
de provocá-lo hematomas.
CORTA PARA:
CENA 13.
INTERIOR. MANSÃO. SALA — NOITE
O local está
cheio de policiais. Dois enfermeiros levam o corpo de Elias numa maca para fora
da casa. Marina está sentada, vestida com uma roupa mais caseira, no sofá,
ao lado de um policial, que a interroga. Ela chora.
MARINA —
Quando eu cheguei, vi o corpo da mesma forma como vocês
o encontraram. Não demorou muito pra eu ligar pra polícia. Meu Deus! Eu nem acredito!
Como isso foi acontecer? Como?
POLICIAL —
Eu peço calma, senhora. Desculpe. Você vai superar isso.
MARINA —
Mas o que aconteceu? Me diz! Por favor! O que aconteceu?
POLICIAL —
Bom, aparentemente, seu marido cometeu suicídio. Ele bebeu, tentou se enforcar
no ventilador da cozinha, só que não conseguiu... Ou não amarrou direito, pois, ao que parece, ele só
fez a teoria de tudo, porém falhou na prática. Há marcas profundas em seu pescoço, devido a corda, claro. Ele
demonstrava um comportamento diferente?
MARINA —
Totalmente. O fato de estarmos entrando em falência estava o incomodando, era
perceptível.
POLICIAL —
Bom, então acho que talvez seja isso.
CLOSE em Marina, que chora
aliviada.
CORTA PARA:
FIM DO FLASHBACK
Em CONTINUAÇÃO
À CENA 1, em DOLLY IN, nos distanciamos da imagem chorosa na tela e,
aos poucos, revela-se a mulher sentada à frente do notebook.
MARINA (chora) —
Eu fiz tudo isso por amor. Saiba, Victor, que tudo, tudo foi por amor. Mas
descobriram tudo! Eu não sei como, mas... Comecei a receber ameaças,
me tiraram boa parte do dinheiro. Eu não pude suportar a pressão.
Não foi nem pelo assasinato, mas sim por você...
CORTA PARA:
CENA 14.
INTERIOR. AGÊNCIA DE
CORREIOS — DIA
Marina está
frente à uma mesa de atendimento. Ela entrega o pen-drive à
atendente, que o põe em uma pequena caixa.
MARINA (V. O.) —
Você irá receber esse pen-drive em até 24 horas após
o envio...
CORTA PARA:
CENA 15.
INTERIOR. MANSÃO. COZINHA — NOITE
POV DE MARINA
Vemos uma garrafa de vinho e uma taça
ao lado, em cima da mesa.
DE VOLTA À
CENA
Marina, vestida em um roupão,
enche a taça com o líquido e retira do bolso o frasco venenoso, que o põe
na bebida e, por fim, a bebe, enquanto ouvimos a narração.
MARINA (V. O.) —
Espero que me entenda. Essa foi a única maneira de fugir disso tudo.
Eu sei que não é a ideia mais inteligente, mas era a única que estava ao meu alcance...
CORTA PARA:
CENA 16.
INTERIOR. MANSÃO. BANHEIRO — NOITE
POV DE MARINA
Vemos uma banheira repleta de
espumas, pronta para se banhar.
DE VOLTA À
CENA
Marina tira o roupão
e, graciosamente, entra na banheira ao fechar os olhos.
MARINA (V. O.) —
Victor, não confie tanto nas pessoas. Elas são cruéis. É um pouco irônico
eu dizer isso após o que fiz, mas acredite. Nem todo mundo é
dócil, amável e livre de culpa. Todos têm culpa de alguma coisa. Agora...
te digo quem me chantageou durante esses dias. Agora te digo quem é
a pessoa por trás disso tudo. Deixo tudo nas suas mãos, espero que resolva...
CLOSE no rosto de Marina, com a água
a bater seu queixo.
MARINA (V. O.) —
Eu te amo, Victor Belmonte... Eu te amo.
PLANO ALTO para mostrar Marina se
debatendo até morrer e, placidamente, afundar na banheira.
FADE OUT
ABERTURA
FADE IN:
CENA 17.
EXTERIOR. CEMITÉRIO — DIA
O funeral de Marina prossegue. Várias
pessoas se fazem presentes, todas de preto, alguns de óculos
escuros. Ninguém chora. O caixão começa a ser enterrado.
CAM vai buscar Victor, triste e
ainda abalado, ao lado da sobrinha, MELISSA, 28 anos, cabelos loiros, bonita e
rosto angelical.
Depois, busca MARTA, 58 anos, mãe
de Melissa, olhar frio, cabelos negros e curtos, ao lado de MARCELO, 32 anos,
cabelos negros e rosto rústico, mais atrás.
Por fim, paramos em VLADIMIR, 32
anos, afilhado de Victor, motorista, cabelos castanhos, olhos cor de mel e
rosto bonito, que observa o quarteto à sua frente.
ARMANI, 62 anos, médico
famoso, cabelos grisalhos e estatura média, se aproxima dele.
ARMANI —
Estou atrasado, não é mesmo?
VLADIMIR (com toda a discrição
que pode) — Ora! Doutor Abreu! Que prazer em ver o senhor! Bom, já
está no fim.
ARMANI —
Eu bem que desconfiei.
Instantes em silêncio.
Os dois prosseguem a conversa sem contato visual, olham apenas para o enterro.
VLADIMIR —
Era uma mulher incrível, não?
ARMANI —
Fantástica! Eu, que a vi daquela forma em sua banheira, jamais poderia
ligar aquela mulher cheia de vida com essa, que hoje é
enterrada.
VLADIMIR —
Meu Deus! O senhor fez a autópsia, não?
ARMANI —
Eu mesmo. Envenenamento.
VLADIMIR —
Deveria ter razões sérias pra chegar aonde chegou.
ARMANI —
Isso é tão chocante... Quando paramos pra analisar e ver bem os detalhes de
perto... O que leva, Deus, uma pessoa a fazer tamanha barbaridade? É
necessário estar imensamente amargurado com a vida pra acabar com ela.
Victor e Melissa se aproximam dos
dois.
VICTOR —
Armani?
ARMANI —
Victor, meu querido amigo!
Os dois se abraçam.
ARMANI —
Acredito que você esteja chocado, não?
VICTOR —
Totalmente. Marina era bem próxima à minha família. Seu marido era meu melhor amigo.
ARMANI —
Posso imaginar.
VICTOR —
Armani... Poderia ir comigo? Por favor, eu te levo até
em casa. Quero ter uns minutos a sós com você.
ARMANI —
Claro, claro.
Os dois partem juntos. Vladimir lança
um olhar para Melissa, que devolve, mas logo desvia para sua mãe
e Marcelo, que se aproximam.
MARCELO —
Vamos?
MELISSA —
Sim.
MARTA —
Melissa, querida, seu tio estava desesperado, não?
MELISSA —
Muito. Eu pude sentir. Ele não largou minha mãe um só segundo!
MARCELO (enciumado) —
Não largou sua mão?
MELISSA —
Não, normal. Afinal, ele estava precisando de uma pessoa nesse
momento. Recentemente, ele perdeu o
melhor amigo, agora a mulher do melhor amigo... Meu tio só
queria alguém como base, Vicente seria perfeito pra isso, mas parece não
se preocupar com o pai.
MARTA —
Vicente é meu sobrinho, eu o considero, claro, mas só
porque não é filho legítimo de Victor não deveria faltar esse momento. Jovens rebeldes!
MELISSA —
Meu tio e ele tiveram uma discussão esse fim de semana, acho que isso
resultou nesse distanciamento.
VLADIMIR —
Bom, vamos então?
MELISSA —
Claro.
Marcelo, delicadamente, segura as mãos
de Melissa.
MARCELO —
Melissa, se não for incômodo, pode vir comigo?
MARTA —
Bobagem da sua parte ter trazido o carro, Marcelo. Poderíamos
ter vindo os três com o Vladimir.
MARCELO —
Bom, é que... Com a tensa situação, eu decidi vir sozinho...
VLADIMIR (corta) —
E, creio eu, não irá se preocupar em voltar sozinho também.
MARCELO —
Vladimir, eu não te perguntei.../
MELISSA (corta, tentando aliviar a
situação) — Bom, mãe, vai com o motorista. Eu vou com o Marcelo. Tudo bem?
MARTA —
Não crio caso com isso.
Melissa olha para Vladimir,
tentando confortá-lo.
MELISSA (P/VLADMIR) —
Tudo bem?
VLADIMIR —
Perfeitamente.
MARCELO —
Então vamos.
Marcelo, sem cerimônia,
entrelaça seu braço no de Melissa e juntos vão embora.
MARTA —
Vamos, Vladimir.
Vladimir tenta disfarçar
o ciúmes e segue com Marta.
CORTA PARA:
CENA 18.
INTERIOR. CARRO DE VICTOR — DIA
Carro em movimento. Victor no
volante. Armani, no banco ao lado.
VICTOR —
Você sabe que você é meu melhor amigo, não é, Armani?
ARMANI —
Sim. Guardo com maestria o dia em que nos conhecemos no Hospital São
Bartolomeu.
VICTOR —
Você foi um ótimo professor pro Marcelo. Eu agradeço.
ARMANI —
Imagina, o garoto é que tem talento, que aliás você investiu, como se fosse seu filho
e não afilhado.
VICTOR —
Marcelo ali é um orgulho pra mim. É o tipo de filho que eu sempre
quis: cuidadoso, esforçado, inteligente... Coisa que o Vicente jamais foi.
ARMANI —
Filhos são assim mesmo. Não é porque têm genética que têm que ser da forma como querem os pais... Bem, creio que a mãe
dele queria o melhor pra ele. Afinal, onde está o jovem Vicente?
VICTOR —
Está enfiado por algum hotel aí. Se recusa a ficar na mansão.
ARMANI —
Pisou na bola na empresa?
VICTOR —
Começou bem como contador, mas aí, depois, desandou. Você
sabe bem como ele é, nunca mudou. Começa empenhado, depois abandona tudo, sobe pra cabeça
a bebedeira, festinhas de final de semana com os amigos, tudo isso atrapalha a
desenvoltura de qualquer pessoa ao trabalhar.
ARMANI —
Bebedeira?
VICTOR —
Sim, mas moderada. Creio eu. Não de modo exagerado, não quero que ele termine como a mãe:
morte por overdose. Não gosto de relembrar.
ARMANI —
Será que a razão pra essa má conduta talvez seja isso? A falta que a mãe
faz? Porque a Cecília morreu e deixou o Vicente pra você criar mesmo ele não
sendo seu filho de sangue.
VICTOR —
Acredito que não. Sempre amei ele como um filho de sangue, mesmo eu não
tendo nenhum. Mas, enfim, nós tomamos um caminho paralelo à nossa conversa, não
era isso... Bom, o que eu queria era te convidar pra um jantar essa noite na
minha casa.
ARMANI —
Claro, irei com prazer.
VICTOR —
Por favor. E também.... quero te contar algumas coisas, algumas coisas que estão
me deixando angustiado.
ARMANI —
Victor, somos amigos. Você sempre poderá confiar em mim. Como sempre confiou.
Os dois se olham e sorriem.
CORTA PARA:
CENA 19.
INTERIOR. CASA DE ARMANI. SALA — DIA
Casa de classe média.
Caroline, 72 anos, irmã de Armani, cabelos grisalhos, óculos de grau, vestida em um
vestido estampado, está sentada em uma cadeira de balanço a tricotar. Há
uma cadeira vazia à sua frente. A janela está aberta, expondo o dia nublado e
sombrio. Armani ENTRA.
ARMANI —
Boa tarde, querida Caroline.
Ele fecha a porta e, em seguida, dá
um beijo na bochecha da irmã. Depois, SAI e vai para a...
COZINHA, onde vai até
a mesa, que contém uma chaleira e pega uma xícara no armário,
enchendo-a.
CAROLINE (O. S.) —
Como foi o funeral?
Ele bebe um gole para depois
respondê-la.
ARMANI —
Cheguei quase no final. Não houve muita coisa pra ser visto.
Levando a xícara
na mão, ele SAI da cozinha e volta para a...
SALA, onde se senta na cadeira vazia,
olhando o dia nublado.
ARMANI —
Me estranha o fato de você não ter ido.
CAROLINE —
Não, odeio funerais. Só irei no meu mesmo.
Eles riem.
CAROLINE —
E a morta?
ARMANI —
O que tem? Ah, por favor, minha querida irmã, não vamos falar sobre esse assunto
desagradável mais uma vez.
CAROLINE —
Não, foi só uma pergunta básica. Nada demais. Por quê? É tão incômodo assim pra você,
senhor médico legista, que não se incomoda ao desovar um ser humano, mas se incomoda em dialogar
com a própria irmã?
ARMANI —
Você é terrível! E, não, eu não desovo as pessoas! Eu só acho que incomoda.
CAROLINE —
Mais incômodo provocou Marina Ferraz quando estava viva.
ARMANI —
Do que está falando?
CAROLINE —
Simples. Que ela não era o que aparentava ser: astuta, decidida e forte. Era uma
mulher cheia de mágoas e marcas, tenho certeza.
ARMANI —
Você não pode sair falando das pessoas as quais você
não conhecia.
CAROLINE —
Ouvi comentários...
ARMANI —
Isso não é relevante.
CAROLINE —
Mas e daí? Já que está morta mesmo! Tenho medo dos vivos e não
dos mortos.
Ele saboreia o chá
e, em seguida, deduz.
ARMANI —
Bom, em minha posição de sempre, acredito que você queira me revelar algo. Estou
certo?
CAROLINE — Depende da sua curiosidade.
ARMANI —
Conte logo!
CAROLINE —
Bom, você pode discordar comigo, afinal os fatos imperceptíveis
são contra a medicina perceptível, então...
Eu acho que Marina Ferraz matou o marido meses atrás.
Armani reage chocado, olha para
Caroline, incrédulo.
ARMANI —
Do que você está falando?
CAROLINE —
Que Marina, com peso na consciência, se matou unicamente por isso: por ter matado o marido.
ARMANI —
Isso não tem coerência. De acordo com exames feitos, Elias Ferraz morreu de suicídio.
Ele tentou se matar enforcado, mas viu que não tinha coragem e acabou se
envenenando...
CAROLINE —
Isso que não tem coerência! Que absurdo! Se quero me matar, me mato apenas de um modo. Se
fosse pra escolher, iria pelo modo indolor: envenenamento. A razão
pro (faz aspas com os dedos) "suicídio" seria a falência
da empresa dele. A razão pro suicídio de Marina também foi isso... Tem coerência? Ela viveu exatos três
meses depois maravilhosamente bem pra vir se matar logo agora?! Tenha paciência!
ARMANI —
É a idade, Caroline. Acho que só o que te restou foi isso, ficar em
casa tricotando, fantasiando histórias... Só
que dessa vez você foi longe, retirou do baú algo que ocorreu há
três meses atrás.
CAROLINE —
Idade uma pinoia, Armani! Estou melhor que você, obrigada. Sei bem do que falo.
ARMANI —
O que você fala não me interessa, não agora.
CAROLINE —
E se... tudo isso estiver ligado ao seu amigo, Victor?
ARMANI —
Lá vem você querendo enfiar o Victor nisso também! Eu é
que não tenho paciência!
CAROLINE —
Escuta, seu desajeitado! Na semana passada, quando fui ao médico,
vi o senhor Belmonte saindo de uma relojoaria com Marina, estavam felizes da
vida.
Armani olha, curioso, para a irmã.
ARMANI —
O quê?
CAROLINE —
Você sabe que eu costumo ir ao doutor Mendes todas às
sextas. E também sabe que, na frente do consultório dele, há
uma relojoaria famosa.
ARMANI —
Sim, sei. Perfeitamente.
FUSÃO PARA:
INÍCIO DE FLASHBACK:
CENA 20.
EXTERIOR. FACHADA DO CONSULTÓRIO DO DOUTOR
MENDES — DIA
Caroline sai do consultório
e se prepara para atravessar a rua, quando seus olhos são
atraídos por Victor e Marina, ambos felizes e com sacolas nas mãos
saírem da relojoaria, aos beijos.
CORTA PARA:
FIM DO FLASHBACK
Em CONTINUAÇÃO
À CENA 19, Armani fica chocado com o que ouve.
CAROLINE —
Eles podiam ter um caso de longa data. Para ficar com o Victor, Marina faria
qualquer coisa, inclusive matar o marido.
ARMANI —
Meu Deus! Como... Mas amantes?
CAROLINE —
É o que todos dizem.
ARMANI —
Quem diz?
CAROLINE —
Todos. O carteiro, os vizinhos, o açougueiro, o homem do bar...
ARMANI —
Que, suponho eu, fazem parte da sua rodinha de fofocas, não?
CAROLINE —
Ora, Armani! Você, sempre engraçadinho, né? Por mais que ache incrível, é isso que penso.
ARMANI —
Bom... Isso tem um quê de coerência, mas chega a ser... Não sei nem te dizer o quê.
CAROLINE —
Querido, eu sei o que eu digo. Sou uma velha aposentada que não
tem mais nada pra fazer na vida. Só o que me resta, como você
diz, é ficar aqui analisando mais de perto histórias
com lacunas feito essa e tentando achar respostas plausíveis
pra alguns absurdos que passam despercebidos.
CLOSE no rosto incrédulo
de Armani.
ARMANI —
Victor Belmonte e Marina Ferraz... Amantes?
FADE OUT
FIM DO EPISÓDIO